Para que serve a educação escolar?

Em 11/02/07 05:51. Atualizada em 24/01/12 08:26.
"Na academia eu malho o corpo; na escola o cérebro"

FREI BETTO

A crise da modernidade afeta suas principais instituições, sobretudo a escola. Se um estudante falecido em 1907 ressuscitasse hoje, ficaria perplexo frente a tamanhos avanços e inovações. Mas com certeza não estranharia a escola, uma relíquia dos tempos de antanho.

Para que serve a educação escolar? Para muitos estudantes, é o túnel pelo qual se tem acesso ao mercado de trabalho. A luz no fim do túnel é a capacitação profissional, um bom salário, uma identidade social, graças a conhecimentos e habilidades adquiridos nos bancos escolares.

Seria a escola mera estufa de adestramento para o mercado de trabalho? Como me disse um adolescente de 16 anos, “na academia eu malho o corpo; na escola, o cérebro”.

De fato, essa “malhação” cerebral tem seus efeitos positivos. As diferenças de salários são menores em sociedades que apresentam melhor resultado educativo.

Porém, o ressuscitado em 2007 notaria na escola uma diferença marcante em relação ao seu tempo: o caráter mercantilista fez a qualidade do ensino se transferir da escola pública para a particular. A progressiva demissão do Estado frente a seus deveres sociais — e direitos da cidadania, como educação e saúde —, fruto amargo do neoliberalismo que, em nome do capital, apregoa a privatização do patrimônio público, sucateia o ensino público e permite que muitas escolas particulares funcionem como meras empresas que ofertam educação como mercadoria de luxo.

Educar deveria ser muito mais que propiciar ao educando conhecimentos e habilidades para que venha a obter melhores salários que seus pais e avós. Mais importante do que formar um profissional, é formar uma pessoa capaz de atuar como cidadã; inserir-se sem preconceitos nessa realidade multicultural; associar significados e construir sínteses cognitivas; superar a mera percepção da vida como fenômeno biológico para encará-la como fenômeno biográfico, processo histórico.

O educando de 1907 estava confinado numa pedagogia que não diferia muito do regime dos quartéis, e onde o aprendizado dependia do esforço memorial. Tratavase de assimilar conhecimentos.

Hoje, o aprendizado é um processo interativo e criativo. E o conhecimento é determinante no novo paradigma produtivo.

Não basta assimilar informações. É preciso saber selecioná-las, relacionálas e fazê-las convergir para processos criativos. Deve a escola dotar o educando de capacidade para enfrentar os novos desafios, lidar com as múltiplas racionalidades vigentes, aprofundar seu espírito crítico. Enfim, saber converter informação em cultura e cultura em sentido de vida.

Se quisesse se reciclar, o nosso ressuscitado se veria impelido a evoluir da memorização à compreensão, da assimilação de informações à seleção crítica, do mero aprendizado à criatividade. Uma boa pedagogia o instigaria a analisar criticamente a realidade; conviver dialogicamente nesse mundo de pluralidade cultural; transformar idéias e sonhos em projetos sociais e políticos.

O estudante de 1907 ficaria atordoado com as novas tecnologias de comunicação. Veria, espantado, o quanto o mundo encolheu. Vivemos agora na aldeia global. Em tempo real, o que ocorre do outro lado do planeta entra em sua casa através da janela eletrônica.

Ele se sentiria muito ameaçado se não soubesse como relacionar conteúdos globais e realidades locais.

Sua identidade cultural estaria abalada frente ao rolo compressor da hegemonização televisiva da cultura de entretenimento como isca hipnótica de atração ao consumismo.

Educar é saber lidar com a diferença e o diferente. O educando que não se sente nem se sabe diferente corre o risco de ceder à massificação midiática.

Buscará na imagem desse espelho retorcido uma face que não é a sua e, no entanto, o fascina pela ilusão de que, ao negar as suas raízes, haverá de alcançar aquele outro ser que só existe em sua fantasia.

Um dos grandes desafios da educação é como incutir vivências comunitárias como expressão de singularidades, jamais de despersonalização.

Esse situar-se no lugar do outro, procurar ver o mundo com os olhos do outro, é o que provoca mudanças de lugares social e epistêmico, e funda as condições de convivência democrática.

Em suma, verbalizando uma expressão em moda, é preciso aprender a se desterritorializar para saber ressignificar os sentidos.

Fonte: O GLOBO